domingo, 10 de janeiro de 2016
Charlie Hebdo, assassinos da lógica
No auge da Revolução Francesa, a derrubada da monarquia estabeleceu uma nova ordem social, que alegava ter como mote a defesa permanente da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Em nome de palavras tão inefáveis, os revoltosos jacobinos, agora no poder, não tardaram a praticar a decapitação de adversários em série e a execução de famílias inteiras, tudo em nome da construção do “novo homem”. Um dos mais exaltados era Marat, tão radical que se posicionava à esquerda dos girondinos. Editava um jornal chamado “Amigo do Povo”, e costumava fazer listas de “inimigos (!) do povo” para ser decapitados. Num debate no parlamento, após mais um de seus inúmeros discursos de ódio, um adversário girondino, espirituosamente, declarou: “dêem um copo de sangue a esse canibal, porque ele está com sede”.
É justamente da França, terra de um iluminismo laico que produziu um dos períodos mais sangrentos da história, que vem um dos fatos mais esclarecedores sobre os conflitos e desalinhos do nosso tempo. Na semana que marcou o primeiro aniversário do atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo, a manchete do jornal dizia “O Assassino ainda está a solta”. Na capa, Deus – ao menos, na forma como o imaginário renascentista costumava representá-lo – empunhando uma metralhadora, em posição sorrateira. O recado não poderia ser mais claro: para os satiristas do Charlie, o atentado em que morreram alguns de seus colegas, não foi o extremismo islâmico, nem mesmo a religião muçulmana, mas sim o próprio conceito de religião, e, muito especialmente, aquele que é princípio e fim de todo sentimento de fé.
O fruto da religião – especialmente a religião cristã – universalmente, sempre foi a promoção da concórdia e da fraternidade universal. Entretanto, a ação efetiva de grupos facciosos e extremistas que cada vez mais matam em nome de Alá, tem dado munição aos críticos da religião, herdeiros do pensamento iluminista mais radical, para quem a religião é fonte de ignorância, extremismo e morte. Charlie Hebdo, na França, e certos segmentos da mídia e do humor no Brasil, são filhos e netos de um laicismo que produziu rebentos como o Terror jacobino, o marxismo leninista-stalinista, o maoísmo e outras filosofias que se especializaram em produzir cadáveres em série. O moderno ateísmo da intelectualidade pós-moderna, com a mensagem de Charlie Hebdo, aproveita-se da solidariedade cristã colhida nos atentados para investir contra a religião como um todo. Torna-se, assim, aliado objetivo do mesmo terrorismo que a vitimou, e cúmplice dos cadáveres de centenas de cristãos sumariamente executados por grupos como Estado Islâmico, Boko Haram, Jihad, Fatah e diversos outros. Somente em 2014, foram executados mais de 100 mil cristãos em todo o mundo. Mas, segundo o raciocínio sinuoso de Hebdo, eles também são culpados. A canalhice ideológica sempre culpa as vítimas, e até mesmo vítimas do terrorismo são capazes dela.
Não é a primeira vez na história humana que cristãos são vistos como gente execrável. Na Roma Antiga, aquela gente estranha que não rezava aos deuses romanos nem participava de suas animadas orgias nas termas, foi o bode expiatório que Nero César encontrou, acusando-os não somente pelo incêndio de Roma, mas também do crime de odium humani generis (ódio contra a humanidade). Hoje, o fogo do terror corrói as bases da civilização ocidental, mas os cristãos estão novamente sob a mira da acusação. E os jornalistas do Hebdo fizeram sua escolha: em nome de uma sociedade sem Deus, vale apoiar os que tentam (em vão) extirpar o cristianismo do mapa. Mesmo que tome um atentado no meio do caminho.
Dêem um copo de sangue a esses chargistas...eles devem estar com sede.
Divisões na Direita: Liberalismo e Autoritarismo em Confronto
Os grandes jornais não deram ênfase a um fato que, há algumas semanas, circula nas redes sociais: o fato de o jovem Kim Kataguiri, coordenador do Movimento Brasil Livre, um dos grupos de pressão que lidera os protestos de rua pelo impeachment de Dilma, vem sendo achincalhado por grupos ainda mais à direita, por ter dito que não é um defensor nem admirador de Bolsonaro, e que não defende a intervenção militar. Segundo ele, “ditadura é o extremo oposto do liberalismo democrático”, e ainda acrescentou que “o projeto dos militares era tão nacionalista quanto o do PT”, fazendo comparações entre os governos Dilma e Geisel.
Foi o que bastou pra que passasse a ser chamado de “pelego da UNE”, “escravo ideológico do MEC” e até de “lacaio dos socialistas do PSDB”. A estridência desse debate, mereceria ser melhor analisada pela mídia, se os repórteres que cobrem o Planalto não estivessem tão ocupados tirando selfies animadas com a presidenta.
Na verdade, esse bate-boca escancara uma questão importante pra entender o Brasil atual: do mesmo modo que sempre existiram “As Esquerdas” – no plural, está ficando cada vez mais nítido que existem também “As Direitas”. O Movimento Brasil Livre de Kim Kataguiri, representa uma forma de Direita Liberal e Democrática, que embora defenda o impeachment, reprova soluções pela via militar. Existem também, com menor influência, os libertários, que ajudaram a organizar o Partido Novo e são admiradores da guatemalteca Glória Alvarez e do Rodrigo Constantino, ex-Veja. São defensores extremados da liberdade individual – inclusive para o direito ao aborto e ao suicídio, embora prendam-se mais à pauta econômica. Já outro segmento, que tem feito muito barulho nas redes sociais, é a extrema-direita, segmento identificado com nomes como Olavo de Carvalho e Jair Bolsonaro. Pregam abertamente o retorno dos militares ao Poder como solução para a crise política. No campo econômico, são quase tão nacionalistas quanto Dilma, mais identificada com o Trabalhismo brizolista do que com as idéias de matriz leninista do PT. No meio de tudo isso, cresceu nos últimos anos no Brasil o fenômeno da Direita Cristã, que sempre esteve presente em diversas democracias, como Estados Unidos e Alemanha, por exemplo. No campo econômico são liberais, mas são conservadores na agenda moral, defendendo restrições ao aborto, casamento gay e outras pautas. Neste segmento estão expoentes da “bancada evangélica”, como Marco Feliciano, e ativistas como o pastor Silas Malafaia e o padre católico Paulo Ricardo. Publicamente, o segmento não abona rupturas na ordem democrática. No âmbito do Congresso, são aliados estratégicos de Bolsonaro e da “bancada da bala”, que prega o fim dos limites para aquisição de armas de fogo pelos cidadãos comuns, tema que a Direita cristã costuma ser contrária.
Um exagero típico das redes sociais faz com que admiradores de Bolsonaro definam Kim Kataguiri como um “esquerdista infiltrado” ou “agente do socialismo Fabiano”. Este incidente, na verdade, mostra como ainda é pouco popular a Direita puramente liberal e civilista, num Brasil que vivencia golpes militares desde 1889. Nas eleições de 1909, uma das primeiras eleições “pra valer” na Velha República, o jurista Rui Barbosa concorreu a presidência com a bandeira civilista, contra o marechal gabrielense Hermes da Fonseca, apoiado pelo então todo-poderoso senador Pinheiro Machado. Rui, que nos dias de hoje seria considerado um “direitista”, perdeu feio. Venceu, mais uma vez, a concepção de estado centralizador e concentrador de poderes – que até mesmo em segmentos da Direita, encontra seus defensores.
A História nos prova que períodos de grave crise econômica são terrenos férteis para o nascimento de líderes carismáticos que preguem o cerceamento de certas liberdades individuais em troca do desenvolvimento econômico ou do combate à corrupção. Bolsonaro, o homem que já defendeu que FHC fosse fuzilado, que certas mulheres “merecem” ser estupradas e que recentemente disse que espera que Dilma morra de câncer, é ovacionado por onde passa, e aguardado sempre por multidões de jovens nos aeroportos. O apelido de “Mito”, espalhado pela internet, sobrevive às suas terríveis declarações, o que deveria merecer uma atenção. Em uma democracia, é saudável que finalmente exista uma direita com densidade popular, que ocupa as ruas e o debate público. Mas não tem sobrevivência garantida nenhuma Democracia que, em nome do pluralismo, abrigue em seu repertório ideais que pretendam subvertê-la. E pouco importa se o pensamento autoritário é de esquerda ou de direita.
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
Por uma Teologia menos medrosa
Os números não mentem, mas por vezes, enganam. O Brasil, que até a década de 80 tinha mais de 81% da sua população católica, viveu nos últimos 30 anos uma transformação cultural sem paralelo em nenhuma outra nação do mundo moderno. O IBGE aponta que os evangélicos de todas as confissões, saltaram de 15,4% da população em 2000, para 22,2% em 2010. Em números totais, passamos de 26 milhões para 42 milhões, numa população de 200 milhões de habitantes. E as principais responsáveis por esta expansão do protestantismo brasileiro, tem sido as igrejas pentecostais (Assembleia de Deus,Igreja Quadrangular, Brasil para Cristo, etc) e as neopentecostais (Universal, Internacional da Graça, Mundial, etc). No entanto, este crescimento vem acompanhado de um paradoxo: por um lado, igrejas vibrantes e em expansão, e por outro, formação deficiente e em declínio, tanto na liderança como no discipulado cristão. Na denominação a que pertenço (Igreja do Evangelho Quadrangular), que tem uma cultura muito consistente de acompanhamento e coleta dedados, há um que considero preocupante: na década de 80, quando o número de evangélicos era bem menor, cerca de 20% dos membros da igreja eram assíduos freqüentadores da Escola Bíblica, valioso instrumento de discipulado cristão. Atualmente, a média não ultrapassa os 8%. E no que diz respeito à formação da liderança, a situação ganha contornos mais graves, já que a Teologia – Ciência de Estudos da Fé e da Religião – É,provavelmente, a ciência menos prestigiada do mundo acadêmico. Tanto assim é que pastores que buscam prestígio no mundo secular, tem certa vergonha de dizer que são formados apenas emTeologia (quando são), e buscam a Sociologia, Filosofia ou Psicologia. As próprias discussões teológicas da atualidade são mais sujeitas a filósofos seculares – Marx, Nietsche e Freud – do que a teólogos de fato. Precisamos, cada vez mais, de Teologia, com “t” maiúsculo. Porque a Teologia, em termos de reflexão sobre a condição humana, é tão rica em material e contribuição quanto a Psicologia e outros ramos de conhecimento. Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Theodor Beza, Schleiermacher, sem falar nos inevitáveis Lutero, Calvino e Armínio – tem muito a dizer sobre o ser humano de hoje, e isso é material teológico, não de psicanálise ou filosofia. Além disso, a Teologia precisa afirmar suas convicções com clareza. Hoje em dia, apesar de os ramos do Protestantismo brasileiro que mais crescem serem os pentecostais – de tradição arminiana – cada vez mais os institutos e seminários destas igrejas são invadidos por literatura claramente calvinista. Há bem pouco tempo, quem quisesse ser professor no ITQ – Instituto Teológico Quadrangular – deveria entregar à supervisão pedagógica uma resenha da obra “Crer é Também Pensar”, de John Stott. Excelente obra, diga-se de passagem, mas toda ela eivada de um pensamento calvinista roxo. E outros autores como John Piper, D.A. Carson, são lidos nos seminários pentecostais sem maiores questionamentos. Um crescimento robusto da igreja brasileira, deve passar pelo surgimento de pesquisadores corajosos, cristãos que ingressem com firmeza e curiosidade investigativa no meio acadêmico, para produzir - e não somente reproduzir – conhecimento. Enfim, uma Teologia que não tenha medo de dizer seu nome, e afirmar com clareza a que veio, pode ser o tipo de contribuição que a sociedade brasileira anseia dessa igreja que cresce, sem dizer exatamente que valores, que legado, quer deixar na estrutura de pensamento da nossa nação e nosso povo.
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
A Juíza e a Bandeira Gay - ou "Lei também é Tradição"
Dias atrás, o jornal “Diário de Santa Maria” publicou o artigo “Tradição não é Lei”, da jornalista e professora universitária Luciana Carvalho, sobre a polêmica em torno de uma cerimônia de casamento coletivo, com um casal homossexual, em um CTG de Livramento. O ponto alto da polêmica foi um incêndio criminoso no CTG que, ao fim e ao cabo, é uma entidade privada, e deve satisfações somente a seus associados sobre os eventos que concorda em sediar. Mas a polêmica segue “acesa”, e creio que o artigo da professora – com quem já trabalhei no movimento cultural da terra de que ambos somos filhos, São Gabriel – é um convite ao bom debate, especialmente sobre o funcionamento do Estado Democrático de Direito.
Após o incêndio, a jovem juíza Carine Labres se deixou fotografar algumas vezes com a bandeira LGBT. Fico cá a pensar uma hipótese: o que faria a imprensa se um magistrado, após determinar a reintegração de posse de uma fazenda invadida, mostrasse aos fotógrafos a bandeira da Farsul? Ou, se preferirem, a do MST? É correto uma magistrada sair por aí com a bandeira de um movimento político, e marcadamente ideológico? É decente uma juíza desfraldar outra bandeira que não a da Constituição?
“Tradição não é Lei”, diz a professora Luciana Carvalho. Mas as leis emanam, sim, das tradições e da cultura de um povo, e são por ela respaldadas. Toda vez que uma legislação dita “avançada” quer impor, à fórceps, a sua interpretação da lei, apelando à força e ao constrangimento moral, este é um claro sinal que falta à lei o respaldo do pensamento coletivo. E isto é ainda mais verdadeiro quando, na pretendida equiparação civil, o que se tem nem mesmo é uma lei – mas uma interpretação do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal, que atropelaram a função legislativa do Congresso e o próprio sentido do artigo 226 da Constituição, que reconhece como entidade familiar ‘a união estável entre homem e mulher’. Numa situação bem brasileira, resolveu-se que o que está escrito não vale – e desde então, a confusão está estabelecida.
É preciso discutir estas questões? Sem dúvida. Mas sem simplificações grosseiras ou espetáculos midiáticos. Se a meritíssima juíza deseja militar por estas causas, que abandone o cômodo salário vitalício e vá disputar uma cadeira no Legislativo, o verdadeiro lugar para se discutir mudanças de costumes - não num Tribunal, que deve julgar em conformidade com as leis...e a tradição, também.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
O Papa, os Evangélicos e a Forca de Anchieta
As câmeras de todo o mundo tinham suas lentes voltadas para Roma, quando o cardeal Jean-Marie Touran assomou à varanda central da Basílica de São Pedro em 13 de março do ano passado, e pronunciou a milenar fórmula do “Habemus Papam”, proclamando a eleição do primeiro pontífice latino-americano da história da Igreja Católica Romana. A notícia foi recebida com entusiasmo e esperança até mesmo fora dos muros católicos. Líderes de diversas igrejas cristãs da Argentina davam testemunho a respeito de Juan Mario Bergoglio, então cardeal de Buenos Aires, como um amigo dos evangélicos, homem de diálogo e apoiador de mobilizações conjuntas em defesa de pontos de vista comuns, como o combate ao aborto e a promoção da família.
De fato, os primeiros movimentos do novo pontífice romano pareciam apontar na direção de uma relação mais amistosa com os evangélicos que a de seu antecessor, Bento XVI, que numa de suas homilias chegou a agredir as igrejas pentecostais, a quem acusou de promover um cristianismo com “pouca densidade institucional e bagagem racional”. Francisco, ao contrário, recebeu líderes de outras igrejas cristãs, como o arcebispo anglicano Justin Welby, o patriarca ortodoxo de Constantinopla Bartolomeu I, e o pastor pentecostal Tony Palmer, entre outros, e chegou a gravar uma mensagem em vídeo para as igrejas pentecostais, definindo a divisão entre os cristãos como um pecado. Mas estes movimentos, normais na retórica dos papas desde João XXIII, precisam ser comparados com as atitudes internas da Igreja Católica. E neste particular, surgem alguns paradoxos, como no anúncio recente da canonização do frei português José de Anchieta, pioneiro do processo de catequização católica do Brasil.
A cultura popular brasileira costuma olhar com benevolência a figura de José de Anchieta, tido entre os católicos como “o Apóstolo do Brasil”, e considerado um dos expoentes do Quinhentismo, período do nascimento da Literatura Brasileira. Poucos sabem, no entanto, do papel desempenhado pelo agora São José de Anchieta na prisão e morte dos primeiros pastores protestantes a atuar no Brasil. Durante a “França Antártica”, colonização francesa do Rio de Janeiro que durou de 1555 a 1567, o vice-almirante francês Nicolás de Villegaignon autorizou, por sugestão do calvinista Gaspar de Coligny, que se solicitasse a João Calvino o envio de missionários. Os pastores Pierre Richier, Guilherme Chautier, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon e Jacques Le Balleur, chegaram ao Brasil em 7 de março de 1557, celebrando, três dias depois, o primeiro culto protestante do Brasil (e das Américas, diga-se de passagem), com a leitura do Salmo 27;4: “Uma coisa pedi ao Senhor e a buscarei, que eu possa habitar todos os dias na Casa do Senhor e habitar no seu Santo Templo”.
Os missionários atuaram com liberdade durante a ocupação francesa ao Rio de Janeiro, mas quando Villegaignon cedeu às pressões políticas dos jesuítas, foram condenados à morte. Jacques Le Balleur, também chamado João de Bolés, conseguiu fugir para o continente e vandeou até São Vicente, sendo poupado de ser devorado pelos índios por estar com um lívro, que os Tupinambás pensaram ser a tão esperada e prometida Bíblia, que era tida como um amuleto. Tratava-se, no entanto, de uma peça de Rabelais.
Em São Vicente os jesuítas forçaram a Câmara Municipal a prendê-lo em 1559. Foi torturado para dar informações estratégicas do Forte Coligny. Levado a Salvador, onde Mem de Sá concordou em condená-lo por ser seguidor da fé protestante.
Em 1567 foi levado ao Rio de Janeiro, onde seria executado, mas o carrasco recusou a matá-lo. E em 9 de fevereiro de 1558, o Padre José de Anchieta estrangulou-o. Evidentemente, historiadores católicos contestam esta afirmação, afirmando que o Tribunal de Inquisição funcionava ainda em Lisboa, e não no Brasil Colônia. Ocorre que Bolés não foi julgado pela Inquisição, e sim pelas autoridades locais, sob forte influência jesuítica. Quem tiver dúvidas a respeito, leia “História do Brasil”, volume 3, do historiador José Francisco da Rocha Pombo, ou “A Presença dos Reformados Franceses no Brasil Colonial” de Franklin Ferreira, ou qualquer outra obra séria sobre o Brasil-Colônia.
Do ponto de vista da organização católica, faz todo sentido que Francisco, um papa jesuíta, canonize José de Anchieta. No entanto, para um pontífice que, até outro dia, anunciava o desejo de diálogo com os evangélicos, a decisão de canonizar um personagem controverso, que carrega na sua história o sangue de missionários protestantes, seguramente vai na contra-mão de suas propaladas intenções.
Tenho respeito intelectual suficiente pelo papa para não acreditar que este fato tenha sido um equívoco, proveniente de qualquer tipo de desinformação. Até hoje, por razões semelhantes, o Vaticano tem evitado falar na canonização do Papa Pio XII, que mesmo não tendo matado ninguém diretamente, é acusado de silêncio complacente diante do nazismo de Adolph Hitler. Mas no caso de Anchieta, o estrangulamento de um pastor evangélico não pareceu chocar os príncipes da Igreja. Esta passagem sobre a vida de Anchieta é suficientemente conhecida pelos prelados católicos, a ponto de existirem obras que a contestam, o que permite supor que o Vaticano decidiu, solenemente, premiar o jesuíta Anchieta como um “bom soldado da Igreja”, não apenas disposto a morrer, mas também a matar por sua fé. Eis aí: por trás dos discursos sorridentes e promessas de “renovação” da Igreja Católica, numa simples e corriqueira canonização ressurge a velha Igreja Romana de sempre.
sábado, 2 de março de 2013
O anticristianismo militante do CFP. Ou: para onde vão as ordens profissionais?
Nestes tempos em que as liberdades civis e institucionais são correntemente desprezadas, tenho me perguntado para que servem, afinal, as ordens profissionais no Brasil. Para proteger os interesses de sua classe é que não é. Na maior parte dos casos, quando não é para o enriquecimento ilícito de seus dirigentes, tem se prestado ao puro e simples proselitismo político. Estamos agora diante de um caso absurdamente emblemático, que é a perseguição movida pelo Conselho Federal de Psicologia contra a psicóloga Marisa Lobo. O crime da psicóloga: afirmar, em alto e bom som, seus valores cristãos nas redes sociais. Anos atrás, o mesmo órgão, como se fosse uma espécie de Congregação do Santo Ofício, tentou impor “silêncio obsequioso” à psicóloga, sob o falso pretexto de que atendia homossexuais em busca de reorientação e de que agia como “pregadora” no consultório.
Para o CFP, Marisa Lobo infringe a ética ao se apresentar como “psicóloga” e “cristã”. Mas o conselho age em favor do laicismo republicano, diriam alguns. O que estranha é que não há, nem de longe, o mesmo rigor contra uma série de profissionais que, em seus sites profissionais e perfis nas redes sociais, propõem uma abordagem da psicologia sob a ótica do Islã, da Umbanda, do Judaísmo, Budismo e tantas outras vertentes. Nada contra, mas por que apenas Marisa Lobo é intimada pelo CFP a excluir de seus perfis em redes sociais a menção de que é cristã? Por laicismo ou por anticristianismo militante? A resposta é simples: porque o CFP há muito deixou de ser uma entidade que zela pelo interesse de sua classe, servindo tão-somente para promoção de bandeiras casuísticas da esquerda no campo da psicologia.
Quisera que este caso fosse a única distorção evidente da finalidade de uma ordem profissional, mas não é o caso. A OAB, tão presente na memória afetiva do país por suas lutas em favor da democracia e das eleições diretas, tem se omitido vergonhosamente em casos onde a liberdade de expressão é ameaçada, como no estranho silêncio diante das agressões sofridas pela blogueira Yoani Sanchez em sua passagem pelo Brasil. Silêncio, aliás, compartilhado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que foi, na prática, condescendente contra as agressões a uma mulher armada apenas com sua palavra. De uns tempos pra cá, a Fenaj só se importa em querer impedir pessoas sem formação de exercer o jornalismo, para poder garantir a sobrevivência de seus cofres. Tal como a OAB com sua provinha para o exercício da advocacia, a Fenaj é apenas uma guilda para garantir reserva de mercado profissional. Nada além.
Enquanto as ordens profissionais forem usadas apenas como correias de transmissão de um pensamento ideológico que abomina a liberdade individual de crença, dias perigosos virão.
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
Onde estava Deus?
“Não me conformo, não me conformo! Por que Deus levou meus amigos”? A pergunta, feita por uma jovem de 20 anos em seu perfil numa rede social da internet, expressa a mesma indagação que muitos silenciam na garganta desde a madrugada de 27 de janeiro, quando uma cortina de fumaça negra ceifou a vida de 232 jovens numa boate em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Vivendo em São Gabriel, cidade vizinha a Santa Maria que também enterrou oito vítimas fatais nesta tragédia, foi impossível ficar indiferente ao pesar que cobria a todos como um manto gigantesco, vendo famílias enterrarem seus filhos, seus mortos, seus sonhos. Num dos velórios que estive a pergunta de uma professora fulminava uma quase-acusação: “Onde estava Deus nessa hora, pastor?”.
Se Deus é amor, porque o mal atinge as pessoas? Ou, dito de outra forma: Se o mal atinge a todos, justos ou injustos, crentes ou descrentes, para que serve Deus? Cabe, tão somente, atribuir o mal à própria espécie humana, ou mesmo ao diabo, se a fé cristã nos afirma que Deus tem todo o Poder? Diante da pergunta, muitos hesitaram, e decidiram concluir que Deus não existe. Outros religiosos, igualmente equivocados, desenvolveram a chamada Teologia do Processo ou Teísmo Aberto, que acredita que Deus não é Onipotente, e portanto, não tem responsabilidade nas tragédias. Ou seja, para fugir do horror de um Deus que permite o mal, criaram para si mesmos um Deus camarada, bondoso, mas incompetente.
O Deus que emana da Bíblia é o criador de todas as coisas. “Eu sou o Alfa e o Ômega; o Primeiro e o Último; o Princípio e o Fim (Apocalipse 22;13)”. Então, teria Ele criado também o Mal? Agostinho de Hipona (354-430 d.C) ensina que, assim como a escuridão não existe como substância, e sim a ausência da luz, o Mal em si nada mais é do que a ausência do Bem, criado por Deus. Entretanto, isso não basta para quem perdeu seus filhos num incêndio. Num mundo onde a emoção tem substituído a fé como critério da verdade, querer afirmar a Bondade de Deus apesar da existência do mal, pode até soar ofensivo. Mas é em tais circunstâncias que a verdade precisa ser reafirmada.
Penso que o mal surge em nossas vidas para colocar nossa consciência no devido lugar. Diante de tanto horror como vimos em Santa Maria, perdem sentido as disputas pessoais, a egolatria, as vaidades, as áreas vulneráveis de nossa vida. Surge, no caminhar silencioso dos que atravessam as ruas em silêncio e de mãos dadas, o afeto, a esperança. Corações que renovam a esperança, não se abatendo diante da perda daquilo que amamos nesta era decaída (2ª Coríntios 12;9).
Em meio a tanto mal, Deus se revela no voluntário que ajuda no socorro, no bombeiro que arriscou a vida, no psicólogo que foi para a linha de frente consolar as famílias. Num dia, segundo crê a fé cristã, todo mal será extirpado. “Deus enxugará toda lágrima; não haverá mais morte, nem dor, nem pranto, pois a antiga ordem das coisas passará” (Apocalipse 23;4). Por ora, resta a certeza de que em cada esquina, Deus ainda nos surpreende com sua misteriosa Graça, no gesto solidário que demonstra que, apesar de tudo, a humanidade não é um projeto destinado ao fracasso. E sim, existe algo maior que a dor ou que qualquer sofrimento: o amor.
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