quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A Juíza e a Bandeira Gay - ou "Lei também é Tradição"

Dias atrás, o jornal “Diário de Santa Maria” publicou o artigo “Tradição não é Lei”, da jornalista e professora universitária Luciana Carvalho, sobre a polêmica em torno de uma cerimônia de casamento coletivo, com um casal homossexual, em um CTG de Livramento. O ponto alto da polêmica foi um incêndio criminoso no CTG que, ao fim e ao cabo, é uma entidade privada, e deve satisfações somente a seus associados sobre os eventos que concorda em sediar. Mas a polêmica segue “acesa”, e creio que o artigo da professora – com quem já trabalhei no movimento cultural da terra de que ambos somos filhos, São Gabriel – é um convite ao bom debate, especialmente sobre o funcionamento do Estado Democrático de Direito. Após o incêndio, a jovem juíza Carine Labres se deixou fotografar algumas vezes com a bandeira LGBT. Fico cá a pensar uma hipótese: o que faria a imprensa se um magistrado, após determinar a reintegração de posse de uma fazenda invadida, mostrasse aos fotógrafos a bandeira da Farsul? Ou, se preferirem, a do MST? É correto uma magistrada sair por aí com a bandeira de um movimento político, e marcadamente ideológico? É decente uma juíza desfraldar outra bandeira que não a da Constituição? “Tradição não é Lei”, diz a professora Luciana Carvalho. Mas as leis emanam, sim, das tradições e da cultura de um povo, e são por ela respaldadas. Toda vez que uma legislação dita “avançada” quer impor, à fórceps, a sua interpretação da lei, apelando à força e ao constrangimento moral, este é um claro sinal que falta à lei o respaldo do pensamento coletivo. E isto é ainda mais verdadeiro quando, na pretendida equiparação civil, o que se tem nem mesmo é uma lei – mas uma interpretação do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal, que atropelaram a função legislativa do Congresso e o próprio sentido do artigo 226 da Constituição, que reconhece como entidade familiar ‘a união estável entre homem e mulher’. Numa situação bem brasileira, resolveu-se que o que está escrito não vale – e desde então, a confusão está estabelecida. É preciso discutir estas questões? Sem dúvida. Mas sem simplificações grosseiras ou espetáculos midiáticos. Se a meritíssima juíza deseja militar por estas causas, que abandone o cômodo salário vitalício e vá disputar uma cadeira no Legislativo, o verdadeiro lugar para se discutir mudanças de costumes - não num Tribunal, que deve julgar em conformidade com as leis...e a tradição, também.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Papa, os Evangélicos e a Forca de Anchieta

As câmeras de todo o mundo tinham suas lentes voltadas para Roma, quando o cardeal Jean-Marie Touran assomou à varanda central da Basílica de São Pedro em 13 de março do ano passado, e pronunciou a milenar fórmula do “Habemus Papam”, proclamando a eleição do primeiro pontífice latino-americano da história da Igreja Católica Romana. A notícia foi recebida com entusiasmo e esperança até mesmo fora dos muros católicos. Líderes de diversas igrejas cristãs da Argentina davam testemunho a respeito de Juan Mario Bergoglio, então cardeal de Buenos Aires, como um amigo dos evangélicos, homem de diálogo e apoiador de mobilizações conjuntas em defesa de pontos de vista comuns, como o combate ao aborto e a promoção da família. De fato, os primeiros movimentos do novo pontífice romano pareciam apontar na direção de uma relação mais amistosa com os evangélicos que a de seu antecessor, Bento XVI, que numa de suas homilias chegou a agredir as igrejas pentecostais, a quem acusou de promover um cristianismo com “pouca densidade institucional e bagagem racional”. Francisco, ao contrário, recebeu líderes de outras igrejas cristãs, como o arcebispo anglicano Justin Welby, o patriarca ortodoxo de Constantinopla Bartolomeu I, e o pastor pentecostal Tony Palmer, entre outros, e chegou a gravar uma mensagem em vídeo para as igrejas pentecostais, definindo a divisão entre os cristãos como um pecado. Mas estes movimentos, normais na retórica dos papas desde João XXIII, precisam ser comparados com as atitudes internas da Igreja Católica. E neste particular, surgem alguns paradoxos, como no anúncio recente da canonização do frei português José de Anchieta, pioneiro do processo de catequização católica do Brasil. A cultura popular brasileira costuma olhar com benevolência a figura de José de Anchieta, tido entre os católicos como “o Apóstolo do Brasil”, e considerado um dos expoentes do Quinhentismo, período do nascimento da Literatura Brasileira. Poucos sabem, no entanto, do papel desempenhado pelo agora São José de Anchieta na prisão e morte dos primeiros pastores protestantes a atuar no Brasil. Durante a “França Antártica”, colonização francesa do Rio de Janeiro que durou de 1555 a 1567, o vice-almirante francês Nicolás de Villegaignon autorizou, por sugestão do calvinista Gaspar de Coligny, que se solicitasse a João Calvino o envio de missionários. Os pastores Pierre Richier, Guilherme Chautier, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon e Jacques Le Balleur, chegaram ao Brasil em 7 de março de 1557, celebrando, três dias depois, o primeiro culto protestante do Brasil (e das Américas, diga-se de passagem), com a leitura do Salmo 27;4: “Uma coisa pedi ao Senhor e a buscarei, que eu possa habitar todos os dias na Casa do Senhor e habitar no seu Santo Templo”. Os missionários atuaram com liberdade durante a ocupação francesa ao Rio de Janeiro, mas quando Villegaignon cedeu às pressões políticas dos jesuítas, foram condenados à morte. Jacques Le Balleur, também chamado João de Bolés, conseguiu fugir para o continente e vandeou até São Vicente, sendo poupado de ser devorado pelos índios por estar com um lívro, que os Tupinambás pensaram ser a tão esperada e prometida Bíblia, que era tida como um amuleto. Tratava-se, no entanto, de uma peça de Rabelais. Em São Vicente os jesuítas forçaram a Câmara Municipal a prendê-lo em 1559. Foi torturado para dar informações estratégicas do Forte Coligny. Levado a Salvador, onde Mem de Sá concordou em condená-lo por ser seguidor da fé protestante. Em 1567 foi levado ao Rio de Janeiro, onde seria executado, mas o carrasco recusou a matá-lo. E em 9 de fevereiro de 1558, o Padre José de Anchieta estrangulou-o. Evidentemente, historiadores católicos contestam esta afirmação, afirmando que o Tribunal de Inquisição funcionava ainda em Lisboa, e não no Brasil Colônia. Ocorre que Bolés não foi julgado pela Inquisição, e sim pelas autoridades locais, sob forte influência jesuítica. Quem tiver dúvidas a respeito, leia “História do Brasil”, volume 3, do historiador José Francisco da Rocha Pombo, ou “A Presença dos Reformados Franceses no Brasil Colonial” de Franklin Ferreira, ou qualquer outra obra séria sobre o Brasil-Colônia. Do ponto de vista da organização católica, faz todo sentido que Francisco, um papa jesuíta, canonize José de Anchieta. No entanto, para um pontífice que, até outro dia, anunciava o desejo de diálogo com os evangélicos, a decisão de canonizar um personagem controverso, que carrega na sua história o sangue de missionários protestantes, seguramente vai na contra-mão de suas propaladas intenções. Tenho respeito intelectual suficiente pelo papa para não acreditar que este fato tenha sido um equívoco, proveniente de qualquer tipo de desinformação. Até hoje, por razões semelhantes, o Vaticano tem evitado falar na canonização do Papa Pio XII, que mesmo não tendo matado ninguém diretamente, é acusado de silêncio complacente diante do nazismo de Adolph Hitler. Mas no caso de Anchieta, o estrangulamento de um pastor evangélico não pareceu chocar os príncipes da Igreja. Esta passagem sobre a vida de Anchieta é suficientemente conhecida pelos prelados católicos, a ponto de existirem obras que a contestam, o que permite supor que o Vaticano decidiu, solenemente, premiar o jesuíta Anchieta como um “bom soldado da Igreja”, não apenas disposto a morrer, mas também a matar por sua fé. Eis aí: por trás dos discursos sorridentes e promessas de “renovação” da Igreja Católica, numa simples e corriqueira canonização ressurge a velha Igreja Romana de sempre.