terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Onde estava Deus?

“Não me conformo, não me conformo! Por que Deus levou meus amigos”? A pergunta, feita por uma jovem de 20 anos em seu perfil numa rede social da internet, expressa a mesma indagação que muitos silenciam na garganta desde a madrugada de 27 de janeiro, quando uma cortina de fumaça negra ceifou a vida de 232 jovens numa boate em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Vivendo em São Gabriel, cidade vizinha a Santa Maria que também enterrou oito vítimas fatais nesta tragédia, foi impossível ficar indiferente ao pesar que cobria a todos como um manto gigantesco, vendo famílias enterrarem seus filhos, seus mortos, seus sonhos. Num dos velórios que estive a pergunta de uma professora fulminava uma quase-acusação: “Onde estava Deus nessa hora, pastor?”. Se Deus é amor, porque o mal atinge as pessoas? Ou, dito de outra forma: Se o mal atinge a todos, justos ou injustos, crentes ou descrentes, para que serve Deus? Cabe, tão somente, atribuir o mal à própria espécie humana, ou mesmo ao diabo, se a fé cristã nos afirma que Deus tem todo o Poder? Diante da pergunta, muitos hesitaram, e decidiram concluir que Deus não existe. Outros religiosos, igualmente equivocados, desenvolveram a chamada Teologia do Processo ou Teísmo Aberto, que acredita que Deus não é Onipotente, e portanto, não tem responsabilidade nas tragédias. Ou seja, para fugir do horror de um Deus que permite o mal, criaram para si mesmos um Deus camarada, bondoso, mas incompetente. O Deus que emana da Bíblia é o criador de todas as coisas. “Eu sou o Alfa e o Ômega; o Primeiro e o Último; o Princípio e o Fim (Apocalipse 22;13)”. Então, teria Ele criado também o Mal? Agostinho de Hipona (354-430 d.C) ensina que, assim como a escuridão não existe como substância, e sim a ausência da luz, o Mal em si nada mais é do que a ausência do Bem, criado por Deus. Entretanto, isso não basta para quem perdeu seus filhos num incêndio. Num mundo onde a emoção tem substituído a fé como critério da verdade, querer afirmar a Bondade de Deus apesar da existência do mal, pode até soar ofensivo. Mas é em tais circunstâncias que a verdade precisa ser reafirmada. Penso que o mal surge em nossas vidas para colocar nossa consciência no devido lugar. Diante de tanto horror como vimos em Santa Maria, perdem sentido as disputas pessoais, a egolatria, as vaidades, as áreas vulneráveis de nossa vida. Surge, no caminhar silencioso dos que atravessam as ruas em silêncio e de mãos dadas, o afeto, a esperança. Corações que renovam a esperança, não se abatendo diante da perda daquilo que amamos nesta era decaída (2ª Coríntios 12;9). Em meio a tanto mal, Deus se revela no voluntário que ajuda no socorro, no bombeiro que arriscou a vida, no psicólogo que foi para a linha de frente consolar as famílias. Num dia, segundo crê a fé cristã, todo mal será extirpado. “Deus enxugará toda lágrima; não haverá mais morte, nem dor, nem pranto, pois a antiga ordem das coisas passará” (Apocalipse 23;4). Por ora, resta a certeza de que em cada esquina, Deus ainda nos surpreende com sua misteriosa Graça, no gesto solidário que demonstra que, apesar de tudo, a humanidade não é um projeto destinado ao fracasso. E sim, existe algo maior que a dor ou que qualquer sofrimento: o amor.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Ortodoxia e Pastoreio Feminino

Em novembro de 2012, um fato de profunda relevância teológica para o cristianismo do século XXI passou praticamente batido, tanto na mídia secular quanto na auto-proclamada mídia “evangélica”. A Igreja Anglicana da Inglaterra deliberou, em concílio, a continuidade da proibição da ordenação feminina para o episcopado. Na Igreja Anglicana, mulheres podem exercer a função de reverendas e diaconisas, mas lhes é interdita a ascensão ao bispado. O resultado desagradou o Arcebispo de Canterbury, Rowan Willians, e até mesmo o primeiro-ministro inglês David Cameron. Como já era previsto, a posição triunfante foi considerada uma vitória da “Ortodoxia”, uma vez que igrejas que pratiquem ou defendam a admissão de mulheres no ministério pastoral são consideradas “liberais” ou “heterodoxas”. Neste sentido, um enquadramento distorcido é tratado como verdade incontestável, e as igrejas evangélicas que consagram mulheres ao pastoreio, são tidas como “heterodoxas” sem que se lhes dê oportunidade de defesa. O termo “Ortodoxia” é resultante da junção dos vocábulos gregos “orthós” (reto) e “doxia” (opinião), com o sentido de “crença correta”, “opinião certa”. Ora, se os ortodoxos são os evangélicos que admitem apenas homens no pastoreio, a intenção da palavra deixa claro que as igrejas que admitem pastoras seriam “heterodoxas”, ou erradas mesmo. Mas, neste aspecto, com quem de fato estaria a “orthós”, a “retidão” do assunto? Sem pretensão de esgotar um assunto tão vasto, trago uma contribuição a este debate, dentro de uma cosmovisão pentecostal clássica – justamente o ambiente onde este tema é mais controverso. Em primeiro lugar, o “Pastor” do rebanho cristão só leva este nome por associação com a figura do pastor de rebanhos da Judéia. Deus, ao estabelecer sua Igreja, prometeu na sua palavra que supriria o povo com “pastores segundo o seu Coração”. E se o pastoreio de rebanhos de verdade é um modelo para o rebanho de Cristo, não deveria haver impedimento algum para que mulheres exercessem este ofício, já que na Bíblia, vemos vários exemplos de mulheres pastoreando rebanhos. "Enquanto Jacó ainda lhes falava, chegou Raquel com as ovelhas de seu pai; porque ela era pastora" (Gênesis 29.9). Assim como Raquel, também Lia, Zípora e outras mulheres exerciam o ofício de pastoras de rebanhos no Antigo Testamento. É ainda no Antigo Testamento que surgem o ministério profético de Débora e Miriã, a posição honrosa de Ester como rainha, e outras demonstrações de liderança feminina. Se no Antigo Testamento Deus não se incomoda com mulheres liderando, será que no Novo Testamento, justamente o ambiente em que a Graça irrompe na história humana, haveria um recuo? Esta tem sido a posição dos defensores mais empedernidos da exclusividade masculina do pastoreio, baseados em leituras descontextualizadas de 1ª Coríntios, e escorados no fato de os apóstolos originais serem todos homens. No entanto, é novamente a Bíblia quem nos apresenta mulheres exercendo função similar à dos apóstolos e evangelistas, como a profetisa Ana, filha de Fanuel (Lucas 2;36-38) e Júnias, que a Bíblia chama claramente de “apóstola”, tendo se convertido antes de Paulo de Tarso, que assim escreveu: “Saudai a Andrônico e a Júnias, meus parentes e meus companheiros de prisão, os quais são bem conceituados entre os apóstolos, e que estavam em Cristo antes de mim." (Romanos 16.7). Ao longo da história, igrejas históricas têm admitido mulheres no pastoreio, como a Igreja Luterana e a própria Igreja Anglicana, que nem de longe poderiam ser consideradas heterodoxas, antes tem se mantido fiéis à tradição reformada. E apesar de forte oposição de muitas das principais igrejas pentecostais ao pastoreio feminino, é justamente no seio pentecostal que uma igreja em particular – Igreja do Evangelho Quadrangular – viria a ser fundada por uma mulher, a missionária canadense Aimée Semple McPherson, que prega a mensagem pentecostal na Los Angeles dos anos 30, organizando uma igreja, uma estação de rádio e um instituto teológico numa época em que as mulheres nem sequer podiam votar. O Cristo a quem servimos, pela obra redentora da Cruz, desfez toda divisão e animosidade, concedendo também às mulheres liberdade para servir, adorar e – por que não? – liderar. Num mundo tão carente de lideranças confiáveis, se uma mulher sente-se chamada para servir a Deus através de seu dom de liderança, que se prepare para tal, e, em nome de Jesus, lidere! E siga firme, confiando na eficácia da Palavra ministrada por – lá vem ele outra vez – o apóstolo Paulo: Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. (Gl 3, 27-28)